Paradigmas, homossexualidade e cristianismo


Em todas as igrejas existem pessoas lgbti, nada faz pensar que a percentagem seja diferente que no resto da população. Por essa razão o cristianismo, como a própria vida, também é lgbti, ou melhor dito, também se vive a partir de uma orientação sexual ou de género não normativa. Além disso, não é algo de novo, sempre houve pessoas lgbti nas igrejas, desde a sua origem. Não há nenhuma indicação na Bíblia que nos faça pensar que Jesus só escolheu discípulos e discípulas heterossexuais, ou que as multidões que o seguiam formavam parte de uma espécie de “apartheid heterossexual”. Nem ao ler os evangelhos podemos afirmar que Jesus teve uma atração sexual e afetiva para com as mulheres. A probabilidade de que Jesus fosse gay é a mesma que a de qualquer outro ser humano, já que segundo a tradição cristã Jesus foi feito em tudo igual a nós.


Contudo, a maneira como o cristianismo assume a sua homossexualidade é muito diversa e isto gera fortes tensões internas, além de afetar a forma como é visto pelo resto da sociedade. A certeza de que isto seja assim é que, como no resto da população, a forma como os cristãos vêem o mundo e se vêem a si próprios não é sempre a mesma. No caso do protestantismo e dos evangélicos tudo isto se traduz pela afirmação “a Bíblia diz...” não se pode fazer sem pôr sobre a mesa o paradigma a que pertence quem fala. A aceitação, indiferença ou a condenação das pessoas lgbti tem mais que ver com a maneira de ver o mundo e o ser humano, que com uns quantos versículos que se encontram na Bíblia.

As controvérsias bíblicas entre cristãos e cristãs ou entre igrejas que partem de paradigmas distintos não têm muito sentido, visto que o conflito se esconde no momento anterior que dá lugar ao suposto ponto de partida da discussão. Além disso, jamais se resolverá demonstrando biblicamente ao outro a validade de uma determinada interpretação, mas fazendo com que uma das duas partes abandone o paradigma a que pertence. Pessoalmente penso que não é fácil e creio que não se pode conseguir com uma discussão que não te implique pessoalmente. Alterar os valores, crenças e formas de ver a realidade necessita algo mais que uma discussão ou um diálogo sereno e respeitoso.

Sintetizando muito e mostrando com clareza o lugar a partir do qual reflito, vejo três diferentes paradigmas que se dão no cristianismo e que a seguir explico brevemente.

Paradigma fundamentalista

Esta cosmovisão vê o mundo como um perigo e entende que os cristãos e cristãs possuem uma verdade revelada na Bíblia, à qual têm acesso independentemente das suas condicionantes pessoais, que deve ser pregada a toda a pessoa para a transformar. Desconfiam de todo o progresso, por isso se alienam com as teses que pretendem conservar as tradições. Rejeitam também as contribuições das ciências que não sirvam para ratificar as suas posições prévias enão as aplicam na interpretação dos textos bíblicos. Por isso a sua interpretação é literal. Segundo este paradigma os genitais determinam se somos homens e mulheres e a partir de eles se associa a cada pessoa umas caraterísticas e funções determinadas. Ao ser esta divisão divina, os que não encaixam dentro do seu paradigma revelam-se contra a vontade de Deus e não podem ser tratados como cristãos. Dentro das suas comunidades aplicam uma ética estrita, silenciam as vozes discordantes impedindo a reflexão, exercem pressão e mau trato psicológico às pessoas lgbti e expulsão os que não seguem a “verdade oficial”. Paradoxalmente, ao ser a sua posição cada vez mais minoritária na sociedade, começam a apresentar-se como vítimas que se vêem privadas de liberdade de expressão, quando na realidade são elas próprias que não a respeitam nas suas comunidades.

Paradigma paternalista

Talvez a diferença mais clara com o paradigma fundamentalista seja que, ainda que continuem a crer que existe uma verdade revelada na Bíblia e acessível facilmente a quem a procura desinteressadamente, o mundo é um lugar onde o Reino de Deus se pode revelar e portanto onde o amor cristão se deve fazer presente. A primeira obrigação de cristãos e cristãs é acompanhar sem condenar e, portanto, ainda que as pessoas lgbti não formem parte da vontade divina original, a função do cristianismo é mostrar a um Deus que acolhe tanto a bons como a maus, a enfermos como a sãos. O enfase bíblico recai sobretudo nos textos dos evangelhos onde não se julga pecadores e pecadoras, mas nos que se apela a seguir o mestre. A atitude de todo o crente é em consequência uma atitude maternal e de acompanhamento àquelas pessoas lgbti que, talvez por causas biológicas ou ambientais, não vivem de acordo com o designo divino. Trata-se, portanto, de um paradigma que põe o enfase no eu heterossexual mais que no próximo lgbti, porque do que se trata é “comportar-se como um bom cristão”“mostrar amor”, situando a pessoa lgbti como objeto que mostra até que ponto a pessoa heterossexual se comporta de maneira “cristã”. No fundo, um paradigma que continua discriminando e vitimizando as pessoas lgbti, mas, neste caso, por respeitáveis e amorosas pessoas cristãs, que não teriam nada que ver com os intransigentes fundamentalistas.

Paradigma evangélico

Neste paradigma, o mundo, a realidade que envolve cada ser humano, não é só um lugar onde se pode revelar o Reino de Deus, mas o lugar privilegiado de onde se interpreta a Bíblia. A Bíblia não é Palavra de Deus quando é lida ou pregada de forma abstrata, mas quando é vivida e interpretada a partir da realidade do próximo. Só o outro e a outra, sobretudo quando sofre uma situação de injustiça, podem fazer da Bíblia palavra divina que interpela. Por esta razão não há verdades absolutas que permitam discriminar ninguém, não há fórmulas eternas, nem leituras ou interpretações que nos autorizem a nos situarmos como sujeitos perante os demais para os objetivar. O amor situa o próximo ao nosso nível e a sua experiência pode-nos ajudar a sair dos condicionantes que impedem o nosso ego de entender a vontade divina. Por isso as leituras legalistas da Bíblia não tem nenhum sentido e em si mesmas não constituem uma leitura evangélica. Os conhecimentos com que contribuem as ciências são úteis tanto para compreender o próximo, como para compreender o contexto no qual se enquadram os textos bíblicos. O evangelho não trata tanto de verdades, mas de próximos; quando as nossas leituras os libertam são evangélicas, quando os discriminam não o são. E é aqui onde as pessoas lgbti se vêem a si próprias como lugares a partir de onde a Palavra de Deus se pode ler, e ao mesmo tempo, como sujeitos que são interpelados pela Palavra de Deus que se revela noutros seres humanos. Jesus Cristo era libertador, não porque defendesse a Lei da Torá, nem porque a interpretasse de uma forma progressista e de acordo com a sociedade onde vivia, mas porque a lia sempre a partir da realidade da pessoa que vivia oprimida para a libertar. Nisso consiste o evangelho.

Cada comunidade cristã pode formar parte de um destes paradigmas, ou refletir vários deles de cada vez, tudo dependerá do grau de maturidade que possuam para acolher a diversidade. Contudo é importante destacar que o tipo de comunidade a que pertença uma pessoa lgbti, pode fazer com que esta viva o cristianismo de uma forma opressiva ou libertadora. Talvez seja aceitável que uma determinada comunidade necessite de um tempo mais ou menos longo para repensar o lugar que ocupam dentro dela as pessoas lgbti, mas o não é tanto, que as pessoas lgbti se neguem a procurar, transformar, ou mesmo construir comunidades onde possam viver o evangelho de uma forma saudável. Ver o dano que a homofobia causa a muitas pessoas lgbti dentro de comunidades cristãs que se negam a abandonar, é desanimador, e questiona-nos se é o evangelho o que pretendem seguir, ou simplesmente necessitam lugares que lhes dêem segurança, ainda que seja a um preço muito elevado. Talvez sejam as pessoas cristãs lgbti mais jovens, que graças aos avanços sociais resistem mais a viver discriminadas dentro das suas igrejas, as que nos permitirão ver em poucos anos mais comunidades realmente evangélicas e menos paternalistas e fundamentalistas.


Carlos Osma

Tradução de Aníbal Liberal Neves







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